Capa de Games (2011) |
Eu leio gibis há mais tempo do que seria saudável.
Aliás, se eu leio, é porque leio
gibis. Foi por meio deles e por causa deles que aprendi a ler, lá bem atrás,
quando tinha apenas três anos. A fascinação que os heróis brilhantes do papel
me causavam (e ainda causam) era tamanha que me impelia ferozmente àqueles
caderninhos de papel...
Desde aquele começo tenho um personagem
favorito, que continua sendo meu favorito até hoje (a ponto de eu trazê-lo
marcado no meu corpo), que é o Superman. Mas no meu coração sempre houve e
continua havendo um local todo especial para os Novos Titãs.
Aquele grupo de heróis jovens, liderados por um
Robin crescido, que havia aprendido tudo com o Batman e ido além... Havia algo
de muito especial neles. Os Titãs eram diferentes de qualquer outro agrupamento
de heróis. A Liga da Justiça era como
um organizado time de funcionários numa empresa. Adultos que tinham uma tarefa
a cumprir e a cumpriam muito bem. Os Vingadores,
na sempre evoluída Marvel, tinham um certo lance familiar, afinal de contas o
Visão (um robô!) era casado com a Feiticeira Escarlate. Mas ainda assim eles
eram adultos, comandados fortemente por um soldado ideal, o Capitão América.
Mas os Titãs... ah, os Titãs. Eles eram como os
Goonies ou os garotos de Conta Comigo. Eram jovens quase reais. Se o Superman representava o modo
correto de fazer as coisas, um pai que ensina pelo exemplo e sempre acerta, os
Titãs erravam, se perdiam, se divertiam.
Eram os amigos que todo garoto queria ter. E, melhor de tudo: que todos
os leitores efetivamente tinham.
Cena de Games (2011), com Asa Noturna em primeiro plano |
Nas histórias extraordinariamente ilustradas
por George Pérez e escritas com rara inspiração por Marv Wolfman era possível
sentir as dores do crescimento de um Robin que não queria mais seguir o que seu
“pai” morcego dizia. De um Kid Flash disposto a por de lado a vida de herói,
seu sonho de criança, para entrar na faculdade e tentar ser normal. Depois, um
promissor atleta que perde partes do corpo num acidente e se torna algo
diferente, um Cyborg pleno. Além de um menino órfão de pele verde, uma princesa
ex-escrava espacial e uma feiticeira filha de um demônio.
Metáforas, metáforas e mais metáforas. Eram as
vidas dos leitores que estavam ali, transfiguradas pela fantasia, que de forma
alguma minimizava aqueles sentimentos. Era, por outro lado, algo que apenas servia
para ressaltar a verossimilhança, tornando a conexão com os leitores ainda mais
forte.
As histórias daquela época dos Titãs, nos anos
1980, eram muito envolventes, diferentes de tudo que havia na DC (e até na
Marvel, apesar dos X-Men de Claremont e Byrne) da época. Ainda me lembro muito
bem do medo que senti do vampiro Irmão Sangue e seus acólitos; da traição doída
que Logan, conhecido como Mutano, sofreu da menina chamada Terra, que enganou os
Titãs e os entregou ao pior inimigo deles, o Exterminador, no Contrato de
Judas. Ou do terror da possessão demoníaca de Trigon, o pai de Ravena.
Havia todo o esquema heróico, mas também vários
outros elementos, que enriqueciam ainda mais a narrativa. Havia uma tensão
sexual no ar. Wally West, o Kid Flash, era apaixonado pela problemática Ravena.
Robin (que logo se tornou Asa Noturna) era namorado de Estelar e não passavam
duas edições em que não houvesse pelo menos um quadrinho dos dois saindo da
cama juntos. Mas sem forçar nada. Era algo simples, natural como a vida aqui
fora.
Mas, além disso, as relações entre os membros
do grupo eram muito bem elaboradas. Mesmo sendo um líder nato, um futuro
Batman, Dick Grayson era sempre questionado, especialmente por Donna Troy, a
Moça-Maravilha, com toda sua sabedoria clássica.
Os Novos Titãs
marcaram época e deixaram saudade. Aquela fase maravilhosa foi se perdendo ao
longo da terrível (para os quadrinhos de super-heróis) década de 1990. Somente nos
anos 2000, quando um leitor daquelas histórias se tornou ele próprio escritor,
Geoff Johns, que uma poeira daquele tempo se espalhou levemente, com os mesmos
Cyborg, Estelar e Ravena acompanhados
agora de novos Robin, Moça-Maravilha e Kid Flash, além de Superboy. Mas não era
a mesma coisa. O mundo mudou, em vários sentidos ficou mais chato e careta, e
sexo e possessão demoníaca não aparecem mais tão livremente num gibi como
antes. A “pegada” se perdeu.
Games
Porém, uma boa surpresa surgiu em 2011. Uma
história perdida, uma última aventura dos Titãs de Wolfman e Pérez: a lendária
graphic novel “Games”.
Desde mais ou menos 1988 que os fãs ouviam
falar de “Games”. Vez ou outra a
saudosa revista especializada “Wizard”
trazia alguma arte. Depois, a internet foi povoada de teorias conspiratórias
sobre os motivos que impediam a publicação da revista. Diziam as lendas que “Games” era muito pesada, sombria, mexia
demais com os personagens e causaria polêmica caso fosse publicada.
Mas a verdade era mais simples. Agora que foi
publicada, Marv Wolfman conta na introdução que sofreu um bloqueio criativo
logo no meio do processo, que foi retomado anos mais tarde, mas aí decisões editoriais
acabaram travando o andamento, que somente em 2011 foi retomado. E ao ver a
obra pronta só é possível dizer que valeu a pena esperar.
Ravena e Cyborg conversam em Games (2011) |
“Games”
foi desenhada por Pérez em painéis maiores, o que deixou a arte detalhada dele
ainda mais precisa e bela. Para esta edição, o desenhista e Wolfman repensaram
as cenas, atualizaram os conceitos e, livres das travas da continuidade,
puderam avançar e criar uma narrativa densa, de forte carga emocional.
Na história, um vilão novo e desconhecido
ameaça a cidade de Nova Iorque, e também os entes queridos dos Titãs,
obrigando-os a participar de um jogo perigoso e mortal, em que estão na mesa
incontáveis vidas.
Diferente do que habitualmente vemos em
histórias de super-heróis, as consequências em “Games” são graves, intensas. Há mortes e outras perdas para os
personagens, que se vêem colocados em situações nunca vistas antes.
Não há como saber se a publicação original, lá
em 1988, teria o mesmo impacto, visto que havia sido pensada para se encaixar
na continuidade da revista mensal. O que se vê na publicação atual é algo que
muda o status quo do grupo de jovens
heróis de maneira decisiva.
“Games”
é o canto do cisne da inspirada dupla Wolfman e Pérez nos Titãs. É uma
homenagem perfeita ao trabalho dos dois e um presente aos fãs, que por tanto
tempo acompanharam as aventuras daquela turma de garotos vivendo suas vidas de
maneira tão parecida com as nossas, ao mesmo tempo em que salvam o mundo de
terríveis ameaças.
Ler “Games”
é como encontrar um álbum de fotografias perdido de alguma viagem da época de
colégio, relembrando o que passou e ao mesmo tempo conhecendo algo novo. Uma
obra de qualidade inquestionável e que ganhou um acabamento digno, com cores
especiais e capa dura, além de extras como a proposta inicial da história para
os editores.
Ali temos um dos aspectos mais sensíveis da
magia das HQs atuando plenamente: o tempo congelado, que mesmo 20 anos depois,
conserva os personagens naquele estado clássico e que consegue, com isso, despertando
a memória dos leitores, transportando-os pelo tempo no folhear das páginas e
resgatando sentimentos de outrora.
Mas acima de toda a carga sentimental, “Games” é um senhor trabalho em forma de
quadrinhos. Uma lição para os criadores de hoje: estrutura narrativa,
construção de personagens, arte espetacular, tudo. Completados pela cereja do
bolo, a lembrança de tempos em que tudo que um garoto leitor de gibis precisava
era de amigos como ele. Como aqueles Novos
Titãs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário